domingo, 24 de janeiro de 2010
Porque alguém se foi....
Porque as carcaças da avó Isaura serão sempre as carcaças da avó, mesmo que mais ninguém goste delas...
Porque mesmo fora do teu tempo, sempre soubeste entender e rir-te no final...
Pelo tempo que passei ao teu colo...
Pelos anos que passámos juntos e em que fomos companheiros de brincadeiras...
Porque tu, mais que ninguém, soubeste mostrar o que é o amor de uma vida...
....e porque irei ter sempre saudades tuas....
Devia morrer-se de outra maneira.
Devia morrer-se de outra maneira.
Transformarmo-nos em fumo, por exemplo.
Ou em nuvens.
Quando nos sentíssemos cansados, fartos do mesmo sol
a fingir de novo todas as manhãs, convocaríamos
os amigos mais íntimos com um cartão de convite
para o ritual do Grande Desfazer: "Fulano de tal comunica
a V. Exa. que vai transformar-se em nuvem hoje
às 9 horas. Traje de passeio".
E então, solenemente, com passos de reter tempo, fatos
escuros, olhos de lua de cerimônia, viríamos todos assistir
a despedida.
Apertos de mãos quentes. Ternura de calafrio.
"Adeus! Adeus!"
E, pouco a pouco, devagarinho, sem sofrimento,
numa lassidão de arrancar raízes...
(primeiro, os olhos... em seguida, os lábios... depois os cabelos... )
a carne, em vez de apodrecer, começaria a transfigurar-se
em fumo... tão leve... tão sutil... tão pòlen...
como aquela nuvem além (vêem?) — nesta tarde de outono
ainda tocada por um vento de lábios azuis...
José Gomes Ferreira
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