segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Está tudo errado conosco....

"“Mas o que é que sentes, afinal?”, perguntara-lhe ela. “Sentes assim um estremeção, uma loucura, um inesperado e arrebatador desejo de atirá-la contra a parede, de rasgar-lhe as roupas e de possuí-la ali mesmo, à bruta, com a praceta toda em choque perante os gemidos que vocês emitem pela janela?”

Isto contou-mo ele depois. Estávamos numa esplanada de Lisboa, com o sol jorrando sobre as nossas nucas – e a conversa, como sempre acontece com os homens atónitos, derivou para a intimidade. Zé está separado há quase um ano. Tem vindo a adiar uma conversa sobre o divórcio, mas sabe que não tarda vai ser preciso andar com a vida para a frente – e é esse o abismo que vem encarando agora, na certeza de que nenhum debate dessa natureza se conclui sem que antes se abram portas e janelas que depois nunca mais se consegue fechar.

Por sua vontade, há que dizê-lo, não tinha havido separação nenhuma. Ainda uns dias antes, ao ir devolver a filha à mulher depois de mais um daqueles fins-de-semana de McDonald’s e Dance Dance Revolution que agora constituíam o momento alto da sua quinzena, ele estendera a miúda à mãe, vira-a fechar a porta atrás de ambas e morrera de novo por dentro. Mas também por isso começava a tornar-se urgente ter “a conversa”, sob pena de dores ainda mais prolongadas. E o que lhe faltava, embora não fosse pouco, era perceber de onde vinha aquele desabamento em que agora redundavam os seus domingos à noite, uma vez a cada quinze dias.

Porque ele tem saudades, sim. Porque, por ele, as coisas teriam continuado iguais a sempre. Porque, se há anos vinha trabalhando de mais, era por não ter alternativa – e porque, mesmo trabalhando de mais, mesmo negligenciando um tanto a relação a dois, mesmo dedicando à miúda todo o pouco tempo livre que tinha, aquele beijo que trocava à noite com a mulher, até escassos onze meses antes, ainda era o selo diário de uma vida pouco menos do que perfeita.

Mas, de facto, nunca se colocara a questão aparentemente essencial: de que sentia agora saudades – da mulher ou apenas da família? Pois para isso mesmo viria a elucidá-lo uma amiga lá de casa, em longo telefonema, determinada a ajudá-lo a pensar na vida. Afinal, Zé, o que é que tu sentes? Isso não será só por causa da cachopa? Não estarás a confundir amor com carências? Não estarás a ser apenas mais um sacana que só quer a sua familiazinha toda no lugar certo, para depois poder andar dezasseis horas por dia a brincar aos consultores, sem atenção às necessidades da mulher?

“Sentes assim um estremeção, uma loucura, um arrebatador desejo de atirá-la contra a parede?”, resumira ela, em jeito de teste do algodão. “Bom, pondo as coisas assim, acho que não. Eu só queria ficar ali com ela, dormir abraçado a ela, acordar ao lado dela…”, balbuciara ele. E ela: “Não chega.”

Portanto, “Não chega” – eis como as pessoas se aconselham mutuamente, hoje em dia. “Não chega” um homem desabar perante a impossibilidade de voltar a dormir abraçado à mulher com quem viveu quinze anos: é preciso que, ao vê-la, seja possuído ainda por um arrebatador desejo de atirá-la contra a parede, rasgar-lhe as roupas e possuí-la à bruta. “Não chega” um homem andar há um ano a bater com a cabeça nas paredes, sem Norte nem Sul: é preciso que deseje ainda a sua mulher como a desejou no primeiro dia.

“Não chega” um homem ter saudades da sua família, daquilo que construiu em conjunto com a mulher: é preciso que esqueça as crianças, a casa, as rotinas e os objectos, concentrando-se apenas nos cheiros originais – e, se em algum momento a mulher vacilar perante a sua atarantação, quase disponível para perdoar-lhe o trabalho em excesso e a dar-lhe nova oportunidade de ser um homem a sério, mesmo que no Verão seguinte tenha de ficar tudo a passar férias em casa por causa da dívida do cartão de crédito, rapidamente surgirão duas ou três compinchas prontas a lembrá-la de que era o que faltava, ou há sexo animal, rosas sobre a almofada todos os dias à noite e poemas de Wordsworth lidos em voz alta pela madrugada fora, ou nada feito. Pena tenho eu de que esta coluna seja de quatro mil caracteres apenas. Não chega."


in Joel Neto.com

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