domingo, 4 de janeiro de 2009
2009: doze passas para ser feliz
31 de Dezembro de 2008,
23h59. Na mão doze passas,
uma para cada resolução
que se quer tomar no novo
ano. Sensatas, prepotentes,
ridículas, seguras. Nossas.
Primeira passa: Tempo
Este ano vamos ter tempo. Vamos
escapulir-nos mais cedo do trabalho para
entregar o corpo a massagens. Vamos
ao cinema uma vez por semana, sessões
duplas se for preciso, Tarantino ou Oliveira.
Vamos contorcer a agenda para marcar
jantares de amigos, daqueles que se
alongam até virarem ceia, pequeno-almoço.
Vamos esticar-nos no sofá, indiferentes à
loiça que grita para ser lavada. Vamos ver
os miúdos sem ser a dormir, vamos dar um
beijo aos pais sem ser no Natal. Vamos
ter tempo para nós, para rir agarrados à
barriga, para ler revistas à beira rio. Vamos
enterrar o telefone debaixo do colchão,
atirar o despertador contra a parede,
dormir mais uma hora, fazer da preguiça
um pecado imortal.
Segunda passa: Corpo
Este ano vamos deixar o ginásio onde
não pomos os pés, onde não levantamos
pesos, onde o rabo não diminui, onde os
músculos não aumentam, onde a carteira
emagrece. Vamos calçar os ténis e subir e
descer colinas, para isso temos sete. Vamos
passear o cão mais vezes, ensiná-lo a atirar
a bola para a apanharmos. Vamos correr
os metros que conseguirmos, hoje dois,
amanhã quatro, para o ano a maratona.
Vamos comprar uns patins, arranhar os
joelhos. Vamos dançar na sala, pular na
cama, trepar paredes, subir um andar a
pé, mais dá-nos cabo dos rins. Vamos
desejar com muita força que o corpo ganhe
contornos de escultura. Esperar para ver.
Terceira passa: Comida
Este ano não vamos renegar um
hambúrguer, umas batatas gordurosas,
uma piza familiar. Não vamos ostracizar
os brócolos por serem verdes, torcer o
nariz aos espinafres, fazer a segregação
da cebola. Não vamos desmaiar com os
transgénicos, benzer-nos perante salada
pronta-a-servir. Vamos deixar o enjoo de
lado para experimentar peixe cru, perceber
que se perderam anos de vida, nunca
mais querer outra coisa. Vamos espalhar
tachos pela cozinha, sujar o fogão, errar
até fazer bem, perceber que a comida feita
existe por algum motivo. Vamos tornar-nos
reis da cozinha, impressionar o mundo.
Vamos estourar dinheiro num restaurante
caro, vamos sentar-nos numa tasca.
Vamos esquecer a ASAE e voltar ao pato
à Pequim.
Quarta passa: Nós
Este ano vamos ajoelhar-nos para
um pedido de casamento. Vamos ganhar
coragem para lhe dizer que temos outro,
que o seu melhor amigo se faz a nós, e
nós a ele. Vamos mudar de casa, uma tão
grande como os nossos sonhos. Vamos
dizer-lhe que o amor já lá vai, passou.
Vamos tentar ter um filho. Vamos apanhá-
-lo com outra, vomitar todas as lágrimas e
arranjar um novo amor. Vamos esquecer
as paixões de 2008, de 2007, todas as que
nos espatifaram o coração. Não vamos
dizer que o problema somos nós, não eles,
porque às vezes são mesmo eles. Vamos
fingir que nunca dissemos “nunca mais”
e vamos viver tudo de novo. Vamos dizer
“desculpa”. Vamos esperá-la com o jantar
feito. Vamos levá-lo à bola. Vamos pedir-
-lhe a chave de casa. Vamos dizer “não
desculpo”.
Quinta passa: Alma
Este ano vamos ser solidários. Vamos
mandar trabalhar quem exigir cinco euros
para “uma sopinha”, pagar um cornetto-
-morango a quem o pedir com convicção.
Não vamos dizer “para comida sim, droga
e vinho é que não”. Vamos sacar de uma
moeda quando a intuição nos mandar,
oferecer o último cigarro, esticar o isqueiro
para lume. Não vamos deixar gorjetas
ao empregado que nos levou o copo que
ainda tinha vinho, ao taxista que quase nos
abateu a tiro por pedirmos factura. Vamos
dar a volta ao armário, deixar partir calças
que nunca viram a luz do dia, livros que já
foram lidos, pacotes de arroz em excesso.
Sexta passa: Viagens
Este ano não damos a volta ao mundo,
mas damos voltas no mundo. Vamos fazer
o mapa de carro, escolher a low cost mais
barata, somar cidades. Vamos para fora cá
dentro, vamos para fora lá fora. Vamos ao
castelo de 28, vamos ver Lisboa de barco,
vamos ao Porto pelos carris. Vamos estar
em movimento, vamos ficar parados a olhar
para Nova Iorque, Roma, Madrid, Xangai.
Vamos ter saudades de casa. Não vamos
querer voltar.
Sétima passa: Poupança
Este ano vamos virar o porquinho ao
contrário, pescar as últimas moedas, jurar
que tudo será reposto. Vamos resistir ao
crédito tão fácil que só pode ser difícil,
ao empréstimo de seis meses que é para
a vida toda, ao dinheiro emprestado que
é sempre vendido. Vamos fazer explodir o
subsídio de férias, pôr nos pés uns sapatos
de dezenas, na parede um plasma de
milhares, não é verdade que uma vez não
são vezes? Vamos fazer contorcionismo
orçamental até ao final do mês, dos meses,
do ano. Vamos suspirar por mais, vamos
ser felizes com menos. Vamos fechar a
poupança-reforma, abrir uma conta-vida.
Oitava passa: Gritos
Este ano vamos gritar com a EMEL,
rasgar em pedacinhos a décima-oitava
multa, lançá-la ao ar versão confetti. Vamos
inverter os papéis, gritar com o chefe, exigir
um “obrigado”, um “por favor”, um sorriso?
Vamos gritar com quem deixar o cão
aliviar-se nos passeios públicos, com quem
não parar na passadeira, com peões que se
arrastam na passadeira. Vamos gritar pelo
Benfica, gritar com o Sporting. Vamos gritar
com a crise, com os professores, com os
bancos nacionalizados, com o prato que se
desfez no chão, com o três no Euromilhões,
com a chuva sem chapéu à vista.
Nona passa: Parvoíces
Este ano vamos oferecer abraços a
quem passar, vamos para a janela lançar
bolas de sabão. Vamos pôr um trampolim
no meio da rua e cobrar um euro por salto.
Vamos trabalhar com um fato de Batman,
assegurar que só podemos trabalhar em
missões heróicas ao serviço da pátria, nada
de mandar mails ou atender telefones.
Vamos andar de bicicleta na rotunda do
Marquês. Vamos pedir um beijo na boca
a um estranho. Só para ver a que é que
sabe.
Décima passa: Eu
Este ano vou jantar fora sozinho, pedir
só um bilhete no cinema. Vou passar um
fim-de-semana inteiro de pijama, sem lavar
os dentes antes de dormir. Vou apagar o
teu número de telefone e verter lágrimas
agarrada a um peluche. Vou cortar a franja
e pintar as unhas dos pés na mesa da
sala. Vou aprender espanhol, mandarim,
informática e cozinha do Camboja. Vou
atravessar o restaurante para dizer que o
miúdo aos berros me tira o apetite. Vou
ver novelas às escondidas, ler romances
pop debaixo dos lençóis. Vou mandar o
bife para trás as vezes que forem precisas,
voz firme, olhar erguido. Vou dizer que não
gostei da prenda, exigir o talão de troca.
Não vou encher o mundo com as minhas
dores, bem bastam as dores do mundo.
Décima primeira passa: Confissões
Este ano vamos pôr tudo em pratos
limpos. Vamos contar quem fez o risco na
porta esquerda do carro, quem atacou a
poupança para comprar o gadget. Vamos
contar que aquelas férias com amigos no
Algarve, há doze anos, afinal foram em Ibiza.
Com o namorado oito anos mais velho. Que
não tinha carta. E que era sensível ao álcool.
Vamos dizer que mentimos, que aquele
vestido a transforma num cachalote, não a
faz parecer mais nova, muito menos magra.
Vamos anunciar que foi por medo que não
entrámos na montanha-russa, não foi bem
por prescrição médica. E que a deixámos
casar com outro porque fomos estúpidos. E
teremos que viver com isso para sempre.
Décima segunda passa: Horóscopo
Este ano não queremos saber se Leão
vai bem com Virgem, se Capricórnio irá para
a cama com Peixes, se Sagitário só poderá
ser feliz com Balança. Vamos dar fogo às
previsões que anunciam dores de dentes,
febres altas e Júpiter na casa de Saturno.
Vamos rir-nos das boas probabilidades
de aumento, de negócios de milhões, de
amores para toda a vida. Não nos digam
que Abril vai ser um mês excepcional,
que em Agosto pode estar calor e que em
Novembro é capaz de chover. Não tracem
a nossa vida por um ano, que a nós só nos
importa o hoje.
* Texto de Ana Garcia Martins publicado no 4º número do jornal do Lux.
P.S.- Retirado do blog APipocaMaisDoce, tks, texto fantástico.
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